Caro Lázaro,
Você me convidou para uma viagem.
Aceitei. No balanço do ônibus, algumas vezes interrompida por um ou outro “vai
descer, motô”, fiz a maior parte do trajeto. Porém, muito mais longo e intenso
que o trajeto de uma hora, que faço até a faculdade, foi o percurso da sua
escrita. Por isso, inicio esta carta agradecendo: Obrigada.
Sabe, Lázaro, eu sou branca. Faz um
tempo que tenho tentado fazer o que você propõe: olhar minha pele como um
privilégio. A leitura do seu livro é parte desse meu caminho pessoal, e ao
mesmo tempo coletivo. Eu aprendi, e me perceber como feminista foi essencial
para isso, que não existe nada mais forte do que o lugar de fala de alguém. Ao
invés de dizer o que os negros querem ou precisam, decidi fechar a boca: abrir
olhos e ouvidos.
Eu nunca terei condições de entender o que é estar em sua pele. Essa é a
principal contribuição que seu livro pode trazer para uma pessoa branca. Eu
nunca saberei o que é “ser suspeita” pelo simples fato de ter meu corpo como
morada. Porém, isso não significa fingir que “não é comigo”. É comigo sim.
Porque se eu continuo confundindo meus privilégios com direitos, continuo
contribuindo para que o racismo, perverso e estrutural, passe despercebido,
como se não fosse nada. E acho que essa é uma segunda grande contribuição aos
brancos que te leem.
Você traz muitas discussões com
propriedade: dialoga com anônimos e famosos. Faz-nos ouvir vozes diversas. Da
Ilha de Paty até a universidade e a televisão. Nos aponta tudo aquilo que
ignoramos por desconhecimento ou por conforto. Talvez, a palavra que caiba bem
seja desconforto. Aquele desconforto saudável de nos olharmos e sermos capazes
de dizer: não é por aqui. A gente se acostuma muito fácil a andar pela trilha
de privilégios enquanto os negros vivem em piores condições e morrem mais cedo.
A gente se acostuma a gritar “meu corpo, minhas regras” como um jargão vazio,
enquanto mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio. Seus corpos,
suas regras? Será?
Lendo seu livro, fiquei pensando no
desconforto das pessoas brancas ao pronunciarem a palavra negra/negro. Você
fala disso: as pessoas negras têm sua identidade tão negada que passam a se
entender como pessoas que “são assim”.
E, sabe, cá pensando com meu botões, Lázaro, percebo essa negação como
um forma de manter nossos privilégios. Nós, pessoas brancas, muitas vezes não
sabemos como falar que alguém é negro em situações casuais. Acabamos por usar “Aquela
menina... morena”; “aquele cara... de cor”. É como se fosse uma palavra
proibida. Olha a gente negando, de novo, a existência. Por outro lado, para
fazer piada: nego, neguinho, preto. Sempre falado com desdém, para
desqualificar. Olha a gente desprezando, de novo, a resistência.
Resistência. Essa é outra reflexão
importante do seu livro. A resistência é insistentemente cobrada, quando o
natural seria que as pessoas simplesmente pudessem viver. Nessa sociedade,
estruturalmente racista, machista e desigual, porém, resistir é a única saída.
É possível resistir de muitas formas. Você mostra a arte: o cinema, a
literatura, o teatro, pensados com responsabilidade, respeito e,
principalmente, abertos e acessíveis para que outras vozes se façam ouvir, podem
ajudar a construir identidades que abandonam o medo, conhecem e amam suas
origens, sua forma, sua cor. Isso é impagável.
Eu tenho muitas coisas para dizer,
Lázaro. Seu livro me causou aquele desconforto bom que citei. Acho que vai
causar em muita gente ainda. Então, como preciso escolher uma forma de
terminar, termino dizendo o quanto seu livro foi capaz de contribuir para a
minha formação, não só como gente, o que deve ter ficado claro, mas como
profissional. Logo serei professora e seu livro é mais um dos que me indicam o
caminho para uma prática sem preconceitos; uma prática que não invisibilize a
história e a cultura de um povo. Isso, a Chimamanda e a Conceição Evaristo já
haviam me ensinado. Você reforçou: é preciso correr do mito da história escrita
pelos que dominam.
Hoje, ao invés de defender o discurso que
“somos todos humanos” (que óbvio!) e de que “somos um país miscigenado, por
isso o racismo não existe”, eu prefiro reconhecer meus privilégios. Meu
racismo. Assim: ouvindo mais do que falando, descontruindo o que há dele em
mim.
Lázaro, mais uma vez, obrigada pela
viagem.
Até a próxima.
Com admiração e gratidão,
Mariane
Referência:
RAMOS, Lázaro. Na Minha Pele. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.
Outras
fotos:
A gente está cansado de saber que o racismo velado no nosso meio é grande demais. E por vezes, perdemos até a dimensão que isso ocupa.
ResponderExcluirQuando vi este livro pelo mundo literário,não dei muita atenção não. E esta é a primeira resenha que leio.
E posso afirmar sem sentir um pingo de culpa, foi uma resenha ímpar!
A maneira, o jeito poetizado de tentar descrever um pouco sobre tudo que há dentro deste universo.
E depois disso tudo, o livro com certeza vai para a lista de desejados!
Beijo
Acho uma das coisas mais idiotas da terra desmerecer qualquer diferença, seja ela cor, religião, opção sexual, necessidades especiais ou outra qualquer.
ResponderExcluirEssa é a primeira resenha que leio sobre o livro e achei muito inspiradora!
Devemos nos colocar na pele do outro, pensar em como gostariamos de ser tratados para deixar de lado essa bobagem chamada preconceito!
Bjoxx ♥♥
Uma idiotice ter racismo se todos somos seres humanos!
ResponderExcluirMuito legal essa obra e é claro que vou ler!
Parece ser bem inspiradora.
Devemos respeitar a todos, pois todos somos filhos de Deus!
Não sei como comentar esse post depois de ler suas belas palavras, Mariane. 👏👏👏👏
ResponderExcluirHoje vejo como pequenos atos, e pequenas palavras podem calar um povo que já não tem espaço para falar. Hoje entendo, e respeito, o porquê das cotas. Hoje, em pleno século XXI, ainda existe aquele preconceito velado. Isso é triste, é cruel... Mas achei bonito ele dizer que precisamos reconhecer nossos privilégios. De fato, muitas vezes nos esquecemos disso, por vezes nos acomodamos.
Sua resenha é maravilhosa, e só me fez ter uma certeza: Preciso conhecer as palavras de Lázaro.
Obrigada, Mariane.
Olá!
ResponderExcluirÉ realmente muito triste ainda existir racismo apesar de tudo o que já passamos.
Gostei muito da forma com que você colocou sua opinião. Foi tudo muito bonito <3
Também gostei muito das partes do livro que você marcou (:
Beijos
Só pelos quotes citados por você pelas fotos do livro, e possível perceber o quanto este livro possui uma escrita de fácil entendimento, e como vamos nos refletir sobre diversos assuntos referentes ao preconceito em relação a cor racial, e nos pequenos gestos do dia a dia. Claro, que este e um assunto no qual me interesso, e com certeza vai me ajudar na minha formação como pessoa e profissional.
ResponderExcluirParticipe do TOP COMENTARISTA de Julho, para participar e concorrer aos livros "O Casal que mora ao lado" e "Paris para um e outros contos".
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Mariane!
ResponderExcluirAchei linda sua carta para o Lázaro e bem pertinente todos os pontos levantados, precisamos mesmo nos colocar no lugar do outro, mesmo que seja negro, afinal, preconceito não é apenas de cor, tem vários outros tipos.
Parabéns!
Gostaria de ler o livro.
Uma semana esplendorosa!
“O amor é a única loucura de um sábio e a única sabedoria de um tolo.” (William Shakespeare)
Cheirinhos
Rudy
TOP COMENTARISTA DE JULHO 3 livros, 3 ganhadores, participem.
Oii Mariane!!
ResponderExcluirParabéns pelas palavras, arrasou!
Infelizmente o preconceito ainda existe e está cada vez mais andando de mãos dadas com as pessoas difíceis por aí né...
Um livro maravilhoso, gostaria mto de conhecer e ler cada página absorvendo as lições que com toda ctz faz os leitores refletirem...
Bjs!
Oi, Mariane!!!
ResponderExcluirQue carta mais linda!! Gostei de tudo que você falou e tão sem sentido existir o racismo que fico sem palavras para falar nesse assunto. Amei cada trecho que você colocou aqui na postagem!! Não tenho que dizer desse livro só que quero muito ler!!
Beijoss
Só pelos trechos marcados percebemos como é interessante o livro, creio que seria uma leitura muito enriquecedora para ser feita. É a primeira que leio sobre o livro, e com certeza vai para minha lista de desejados, pois sempre podemos melhorar nossas ideias. Muito bacana o livro!
ResponderExcluirUm livro que mexe com a gente e nos deixa refletindo, pois o pouco que li é a mais pura verdade, chamar uma pessoa negra de morena acontece e muito entre outras coisas, infelizmente por mais que é tentado passar que todos somos iguais o preconceito ainda existe e de várias formas.
ResponderExcluirEssa última frase grifada foi muito pesada!!! Eu nunca tive oportunidade de ler um livro assim, mas tenho uma admiração enorme por esse cara, essa carta no começo, na verdade o post todo parecia uma poesia em minhas mãos, reconhecermos muitas vezes oq somos e querermos mudar isso de alguma forma, colaborar para que o mundo seja melhor, foi isso oq tu fez !!! Quero muito poder ler esse livro, eu nunca sofri muito preconceito pela minha cor, mas tomo as dores das que são como eu, e anseio por um dia em que todos nós seremos considerados como iguais. Nem melhor. Nem pior.
ResponderExcluirOlá. Não vou entrar em polêmicas, apesar de ser um livro que provoca isso, mas não concordo com seu ponto de vista, e provavelmente com o dele. Racismo existe sim, os números apontam realmente para uma maior violência contra mulheres negras, mas isso se dá por fatores que não são só atrelados a cor. São também consequências socioculturais, econômicas e políticas. Não que não tenhamos muito a melhorar e crescer, mas justificar tudo na cor da pele e no racismo... não. Não curto pensamentos extremos e radicais, tudo, na realidade, é muito relativo. Infelizmente acredito que não seja um livro que vá me agradar. Prefiro outras visões sobre o tema.
ResponderExcluirBeijos.
Olá Amanda,
Excluiro Lázaro está longe de ser "radical", embora eu não veja problema nessa palavra. Além disso, ele não coloca a questão étnico-racial como problema único e exclusivo do Brasil, embora seu foco seja falar da sua experiência do ponto de vista racial. Ou seja, ele fala da sua vivência como homem negro, trazendo outras vozes e levando em consideração outras dimensões como classe e gênero. Por último, gostaria de dizer que esse livro não causa "polêmica", mas proporciona um debate incrível e necessário.
O racismo taí, não é invenção dos negros, não é exagero. O Lázaro ajuda a enxergar isso.
Beijos,
Mariane
Não tenho nada contra o Lazaro Ramos, mas quando li os quotes não gostei do que li, acho que ele exagerou nas palavras, não concordo algumas coisas que ele diz, mas acredito que o racismo ainda é grande aqui no Brasil, e no mundo todo, mas o que fazer? Não só o racismo, mas muitas outras coisas.
ResponderExcluirVisitem emu blog!
garotaeraumavez.blogspot.com.br
Obrigada!
Oi Jady,
Excluirconcordo que o racismo não é nosso único problema; assim como o machismo, a desigualdade social, o acesso à educação de qualidade não são nossos únicos problemas, mas continuamos falando sobre eles. Por que seria diferente com o racismo?
Sobre sua pergunta (o que fazer?), Eu não tenho a resposta. Acredito, no entanto, que podemos começar com reflexões importantes como a do Lázaro.
Beijos,
Mariane
Eu não tinha lido nada ainda sobre do que se tratava a história deste livro, após ler sua resenha adicionei ele em minha lista de leituras, sua resenha está muito boa, e acho que este livro seria um importante leitura para todos, sem dúvidas pretendo ler Caro Lázaro.
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